Esquerda Libertária vendedor ambulante-001

Publicado em 7 de outubro de 2013 | por James Peron

Por que os pobres necessitam de direitos de propriedade?

Logo cedo de manhã, as ruas em frente ao meu apartamento se tornariam uma “colmeia” de atividade. Pequenas tendas espalhadas por todos os lados, preenchendo todos os espaços disponíveis na calçada. Alguns cachos de banana, caixas de tomates ou de batatas estavam à venda. Os vendedores de jornais ocupavam as esquinas movimentadas. Ambulantes com todos os tipos de produtos ou serviços estabeleciam seu negócio.

Mesmo quando a noite chegava, a atividade não cessava, apenas diminuía seu ritmo. Os vendedores de vegetais iam para casa. Agora as ruas eram perfumadas com o aroma de salsichas Boerewors na grelha. Caminhando nas ruas depois de escurecer, eu era rodeado por vendedores de comida procurando lucrar com pessoas que quisessem fazer um lanche antes de dormir.

Esses vendedores estão entre as primeiras memórias que tenho sobre a minha vida na África. Não somente estava na África, eu estava na área mais densamente povoada de todo o continente – no bairro residencial Hillbrow, em Johanesburgo. Aqueles vendedores eram elemento-chave da vida em Hillbrow. Alguns até dizem que foram responsáveis por sua decadência. Hoje, Hillbrow é uma favela, repleta de prostitutas, traficantes e usuários de drogas, estrangeiros ilegais e moradias em estado precário. Dez anos atrás, essa região era o centro da elegância de Johanesburgo.

Os ambulantes foram acusados por grande parte da decadência por causa de seus estandes. A cada dia, eles deixavam para trás muito lixo e comida estragada. Caminhar na calçada tornou-se impossível, pois cada metro quadrado estava ocupado por mais e mais ambulantes com o passar das semanas.

Uma tentativa honrada de ganhar a vida tinha se tornado uma “praga” social. Com a mudança política na África do Sul, a aplicação das regulações sobre os ambulantes mudou. Primeiro, o novo governo tentou obter favores dos ambulantes e nenhuma regulação foi aplicada. Com o passar do tempo, o distrito central de negócios tornou-se uma área não aconselhável. O luxuoso Carlton Hotel fechou suas portas e 50 andares de quartos de hotel ficaram vazios. Mesmo a Bolsa de Valores de Johannesburgo deixou Johanesburgo para a vizinha mais afluente, Sandton. Onde antes eu caminhava tranquilamente após a meia noite, agora eu recusava mesmo entrar em plena luz do dia. Com a decadência desse centro, o governo flutuou entre regulações rígidas e nenhuma regulação de leis de ambulantes.

Mas seja lá quais forem os pecados atribuídos aos ambulantes, podemos realmente culpá-los? Em uma nação com mais de 40 milhões de habitantes, menos que 25% estão empregados – um problema exacerbado por novas leis trabalhistas. As calçadas foram criadas para os pedestres, não vendedores de rua. Contudo, sem os vendedores de rua, os filhos dos ambulantes passariam fome.

O fato é que a raiva aumentou contra os ambulantes, e até hoje o conflito continua, dado que mesmo hoje as calçadas são consideradas propriedade pública ou dos comuns. Economistas têm falado sobre a “tragédia dos comuns”, e esse é somente mais um exemplo de como a propriedade pertencente aos comuns é sobreexplorada de maneira que acabam contraprodutivas para todo o mundo.

Mesmo o problema do lixo em lugares públicos é um problema de propriedade comum. O economista Walter Block notou que esse problema só ocorre em propriedades públicas. Sem dúvida, o lixo é deixado na propriedade privada aberta ao uso público – lugares como shoppings, estádios de beisebol e cinemas. Mas nesses locais, os proprietários, em vez de enviar a polícia para entregar os ingressos aos que jogam o lixo, eles enviam a equipe de limpeza. A limpeza é parte do negócio.

Mas faltam direitos de propriedade ao comércio de rua, gerando uma insanidade de problemas. Os comerciantes não têm direitos de propriedade sob seus “estandes” e sabem que podem ser desapropriados a qualquer momento. Periodicamente, batalhões da polícia fazem um arrastão e confiscam suas mercadorias e suas bancas. Como resultado, os ambulantes não se importam em investir em bancas melhores. Qualquer caixa de papelão velha no chão serve. Qualquer outra coisa representaria um investimento que não podem dar-se o luxo de perder.

Hernando de Soto observou o mesmo problema com os vendedores ambulantes no Peru. Ele escreveu: “a ameaça de despejo sempre paira sobre os vendedores ambulantes, especialmente quando ocorrem congestionamentos de trânsito ou pressões por parte dos residentes. Praticamente falando, tal fato descarta qualquer investimento de longo prazo no local, forçando os vendedores a manter as vendas em carrinhos de mão em vez de estandes feitos com materiais de construção apropriados, equipados com água corrente, eletricidade, refrigeração, estoque, vitrine e quaisquer outros recursos que permitam a oferta de um volume considerável de mercadorias. A instalação de melhorias como sanitários, estacionamento ou jardins seria impraticável”. [1]

Uma solução para o conflito que surge quando interesses conflitantes tentam apoderar-se de um local público é a privatização. Como destaquei anteriormente, a única alternativa é o uso de medidas autoritárias, tais como a força policial, multas e confiscos. [2]

A Propriedade Funciona

Em uma área de Joanesburgo, a solução privada foi testada e está funcionando. Os distritos administrados pela iniciativa privada têm sido criados por empresários na tentativa de resolver os problemas. Um exemplo desse tipo de distrito é bem próximo de minha casa, o Rosebank Management District (RBMD).

Havia um problema com os ambulantes. Um pequeno trecho da Craddock Avenue está entre o Shopping Rosebank e outros estabelecimentos menores do outro lado da rua. Cerca de 140 ambulantes abarrotaram-se nessas duas quadras. Tentativas de restringir a área de calçada utilizada foram inúteis, pois, assim que a fiscalização cessava, os ambulantes tomavam todo o espaço possível para si. Os pedestres eram frequentemente forçados a caminhar na rua. Se uma pessoa parasse para ver algum tipo de artesanato à venda, ela bloquearia todo o resto de calçada que ainda restava. Cada ambulante, agindo racionalmente no seu auto-interesse, adotou um comportamento que coletivamente era danoso – tudo porque ninguém tinha direito à propriedade que estava utilizando.

O RBMD pensou em uma solução. Primeiro, a rua foi cedida a tal comércio e fechada para o tráfego de automóveis. Segundo, grande parte da rua foi transformada em área aberta ao publico. Um tipo de mercado de dois andares foi construído e uma empresa privada de camelôs foi contratada para administrar o local. Cerca de 60 vendedores de rua foram escolhidos para ocupar os espaços disponíveis nesse mercado, pagando um valor mínimo de aluguel. Na frente desse mercado, onde os ambulantes costumavam vender, o RBMD contratou dançarinos africanos que fazem shows regulares. Os restaurantes da área possuem mesas externas. O distrito, que estava em ruínas, tornou-se uma das principais atrações turísticas.

O RBMD também contratou uma equipe de segurança e de limpeza. Com a melhoria da segurança, consumidores, comerciantes convencionais e ambulantes beneficiam-se. Além disso, a cidade não precisa mais se preocupar com a limpeza, pois o RBMD também assumiu tal responsabilidade.

Anteriormente, o conflito era inevitável, pois se permitia a existência de um forte conflito de incentivos. Tão logo os vendedores informais foram introduzidos no sistema de mercado com direitos de propriedade, vendedores formais e informais puderam cooperar, beneficiando-se mutuamente.

Outra forma de acabar com a “tragédia dos comuns” é a criação de bancas para ambulantes. Nesse sistema, estabelecem-se locais específicos e aos vendedores que lá operam concede-se a posse da banca em si. Pela concessão do direito de propriedade ao pequeno território que estão usando (querendo-se ou não), a cidade pode criar um novo conjunto de incentivos para os ambulantes.

Sob a legislação atual, cada banca representa um capital morto: seu valor não pode usado corretamente porque lhe falta reconhecimento legal. Em toda parte do Terceiro Mundo, como de Soto habilmente destacou no seu livro O Mistério do Capital, existem vastas quantias de capital “morto” [3]. Construções habitacionais sem escritura, negócios clandestinos, vendedores de rua – todos representam uma porção do capital “morto” do terceiro mundo. O reconhecimento legal por si só criaria grandes quantias de riqueza quase instantaneamente, riqueza que os pobres poderiam aproveitar para expandir e criar ainda mais riqueza.

Locais Transferíveis

Um sistema de direitos de propriedade permite a transferência de locais. As regulações comerciais atuais assemelham-se a uma lei da captura. Um ambulante pode usar um local contanto que o tenha obtido antes dos outros. Mas a transferências de locais nesse sistema pode ser difícil, dado que os ambulantes não possuem direitos de propriedade. Tal fato gera estagnação econômica e dificulta o processo de aproveitamento, por parte dos ambulantes, de um mercado em desenvolvimento. Logo se tornará evidente que muitos locais possuem o mesmo valor econômico para todos os ambulantes. Se os ambulantes possuem direitos de propriedade, eles serão capazes de arranjar o melhor local de acordo com o aspecto do custo benefício. Alguns locais valerão mais, e assim como negócios formais distribuem-se de acordo com a lucratividade em um local específico, a mesma coisa acontecerá com esses vendedores de rua. No Peru, de Soto descobriu que sistemas de propriedade extralegal eventualmente evoluem, permitindo aos ambulantes vender locais específicos. E como todos os tipos de produtos, cada local é precificado de forma diferente.

Flexibilidade de uso poderia também significar que um ambulante poderia usar um local pela manhã, enquanto um diferente usaria pela tarde. Exatamente tal flexibilidade foi verificada por de Soto entre os ambulantes informais. Ele escreve:

Não é incomum, por exemplo, ver um local ocupado por um vendedor no inicio da manhã (com seus sanduíches e doces para o café da manhã) e, logo após as 9 ou 10 da manhã, dando espaço a um vendedor de sucos que, ao meio dia, libera o espaço para o vendedor de almoços que, depois das 4 da tarde, é seguido por um vendedor de plantas medicinais, o qual posteriormente o disponibiliza para comida chinesa, ficando ele até o final do dia. Essas mudanças permitem a uma banca operar como uma grande loja, maximizando seu valor comercial. Por iniciativa própria, os diferentes vendedores oferecem somente uma pequena variedade de bens e serviços. Quando a vizinhança não opera satisfatoriamente, eles tentam melhorar a situação estabelecendo esses turnos, adaptando a banca para demandas diferentes dos consumidores, as quais vão surgindo no decorrer do dia, assim explorando o valor comercial da localização dia e noite.[4]

A criação de direitos de propriedade também mudará o comportamento dos ambulantes, dado que lhes oferece incentivos para melhorar seus negócios. Isso gera investimento que atualmente é desencorajado, permitindo a transferência dos direitos empresariais. Tal sistema de direitos de propriedade ajudará a transferir vendedores informais ao mercado formal. Em vez de ser um beco sem saída, a venda de rua poderia tornar-se incubadora de negócios vibrantes e crescentes. Uma classe inteira de empresários poderia ser criada, com todos os benefícios que tais indivíduos concedem à sociedade.

Uma abordagem de direitos de propriedade induz não somente a maior flexibilidade, mas também ao melhor policiamento das áreas comerciais. Distritos de administração local sabem de suas áreas. Eles sabem quem deveria ou não estar em um local específico. Eles estão bem informados quando um vendedor está causando problemas para outros vendedores e quem é responsável por resolvê-los. Dessa forma, eles estão mais bem preparados para administração a nível micro as localizações específicas. Uma cidade grande, com milhões de pessoas e dezenas de milhares de ruas não pode sinceramente competir em flexibilidade com tal administração localizada.

Em Lima, capital do Peru, o governo municipal veio a reconhecer que proibir o comércio de rua era inútil. O governo municipal então decidiu criar locais específicos de mercado para vendedores de rua. Mas, de acordo com de Soto, a municipalidade “não tentou monopolizar a construção dos mercados. Pelo contrário, com o consentimento do governo central, ela isentou do pagamento de impostos e taxas de licenças de construção de qualquer um interessado na construção de mercados, e até mesmo estabeleceu regras mais favoráveis às organizações de vendedores”. O resultado foi que, entre 1964 e 1970, os vendedores informais “construíram quatro mercados para cada mercado construído pelo estado”.[5]

Os ambulantes representam o início do que de Soto chama “uma longa marcha” ao capitalismo. Quando impedidos e atrapalhados pelo governo, a evolução natural dos direitos de propriedade é obstruída. O resultado é o declínio e a decadência. Mas quando, em vez de controlar, as ações governamentais agem como protetoras dos direitos de propriedade, então a venda de rua é o primeiro passo em direção à prosperidade.

Notas

[1] Hernando de Soto, The Other Path (New York: Harper & Row, 1989), pp. 66-67.

[2] “Liberty, Property and Crime,” Ideas on Liberty, November 2001, p. 11.

[3] Hernando de Soto, The Mystery of Capital (New York: Basic Books, 2000).

[4] De Soto, The Other Path, p. 67.

[5] Ibid., p. 81.

 

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Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Adriel Santana.


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