Filosofia Yonomami

Publicado em 28 de agosto de 2013 | por Diogo Costa

Faca na mão, multiculturalismo no coração

A diversidade cultural de sociedades modernas como a brasileira é um fato. Como lidar com essa diversidade, um problema. Quando pessoas ou grupos diferentes discordam sobre quais valores devem ser preservados e quais rejeitados, aumenta-se a possibilidade de conflito. Na época recente, as tentativas de reação ao problema da diversidade cultural têm buscado mais a integração do que a separação. O apartheid e o isolacionismo cultural dão cada vez mais lugar ao liberalismo e multiculturalismo.

Liberalismo e multiculturalismo se assemelham porque ambos garantem o direito a estilos de vida não aprovados pela maioria da sociedade. Mas enquanto o multiculturalismo se encerra na soberania da liderança de cada grupo cultural sobre seus membros, o liberalismo assegura a soberania de cada membro do grupo.

Para entender o significado dessa diferença, e a crucialidade de suas implicações, copio abaixo um parágrafo do livro Yanomami: Um povo em luta pelos direitos humanos de Neusa Romero Barazal, doutora em Ciências Sociais pela PUCSP. Ao tratar do assassinato de recém-nascidos pelo grupo indígena, Barazal comenta:

Apesar dos Yonomami manifestarem muita afeição e carinho para com suas crianças e de dedicarem boa parte do seu tempo a elas, existe a prática do infanticídio nos seguintes casos: de controle da natalidade; do recém-nascido ser defeituoso (a própria mãe providencia o seu desaparecimento), de nascimento de gêmeos, onde o suprimido é o mais fraco; no caso de gêmeos de sexos diferentes, a supressão feita é a da menina; se a mãe está ocupada com a criação de uma outra criança com menos de três anos de idade; se acontecem nascimentos sucessivos só de meninas; nascimento de criança de pai ilegítimo (neste caso não há exceção, de acordo com os costumes Yonomami). A explicação para essa prática gira em torno do sacrifício da vida de alguns para a manutenção da sobrevivência dos demais; dos indivíduos deformados que se transformam num peso para os pais e para a comunidade; o mesmo acontecendo com os gêmeos que, caso um deles não desaparecesse, dificultaria a vida da mãe que precisaria, ao mesmo tempo, trabalhar, amamentar e cuidar das crianças.

As crianças costumam mamar a todo instante que sentem vontade de fazê-lo e este costume dura, em média, até os três ou quatro anos de idade da criança. Outrossim, deve haver alguma explicação para a escolha da menina para a prática do infanticídio, o que não fica bem compreendido pelos ocidentais. O que se observa na maioria das aldeias é que o número de mulheres Yonomami é sempre menor, quando comparado ao dos homens, por isso é que estes, quando “adultos, entram em brigas sangrentas para conseguir uma companheira” (Re; Laudato, 1988, p.167). O infanticídio não pode ser considerado um ato de indiferença, ou de desumanidade praticado pelos Yonomami porque, segundo a lógica de sua cultura, ele exerce uma função importante no equilíbrio da vida em comunidade.

Ao defender os direitos de cada indivíduo, os liberais reconhecem o crime que é o assassinato de uma criança. A Drª. Neusa reconhece apenas o direito dos líderes do grupo em praticar o assassinato, ou, como prefere a autora, o “desaparecimento” e a “supressão” de criancinhas.

Vejam bem do que a Professora Neusa está a favor: um crime deixa de ser crime se for praticado repetidamente por muito tempo. Se começarmos a matar professores com doutorado a partir de agora, e continuarmos a mesma prática entra ano, sai ano, as Drªs. Neusas do século XXII dirão que tudo está bem, é a lógica da nossa cultura: por consumir recursos da sociedade sem contribuir com nenhuma produção de fato, os doutores são um peso para a comunidade.

Não existem diferentes lógicas assim como não existem diferentes justiças ou diferentes verdades. E a verdade é que, se o assassinato de inocentes é um crime, uma violação de justiça para todos os humanos, logo será crime se for praticado no oeste europeu, no leste asiático, ou no centro-oeste brasileiro. Direitos humanos se aplicam a toda a humanidade, não apenas a crimes cometidos por ocidentais contra outras culturas, ou por maiorias contra minorias.

Drª. Neusa provavelmente acredita no progresso, que as transformações ocorridas no Brasil e no resto do mundo civilizado nos últimos 50 anos foram provavelmente positivas. Mas não acredita no progresso para os outros. Os outros devem permanecer exatamente como são no momento da observação do cientista social. A compreensão do valor da vida humana, da dignidade de cada pessoa, pode ser ensinada aos filhos da Drª. Neusa, mas não aos seus vizinhos étnicos. Eles não podem ter nenhum tipo de progresso moral, devem permanecer praticando os mesmos hábitos, trabalhando nas mesmas profissões, e morrendo das mesmas doenças. Quem lhes trouxer mudanças que ampliem sua expectativa de vida e sua capacidade de escolha será considerado um corruptor cultural.

O multiculturalismo da Drª. Neusa está protegendo a civilização indígena dos hábitos ocidentais da mesma forma que um muro de Berlim protegia os alemães orientais da liberdade ou a pobreza de Bangladesh protege seus habitantes da prosperidade.

A defesa do multiculturalismo é, portanto, incompatível com uma sociedade aberta, pacífica e baseada na universalidade dos direitos do homem. O respeito pela independência de minorias como os Yanomami não deve terminar nos seus líderes. A verdadeira tolerância cultural respeita a independência da menor das minorias de qualquer grupo: o indivíduo.


Sobre o autor

Diogo Costa

É presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York. Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com



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