Direito beagle-puppy

Publicado em 24 de outubro de 2013 | por Adriel Santana

Direitos dos animais: uma abordagem crítica

 

“O artigo abaixo é uma tentativa do autor de solucionar, do ponto de vista teórico e moral, a questão da tortura dos animais com a defesa da propriedade privada.”­­

Desde a metade do século XX, quando o movimento ambientalista floresceu, ao menos nos moldes atuais, e iniciou sua expansão pelo mundo, a sociedade vem se reorganizando sobre determinados hábitos e costumes e repensando a forma como se dá a relação dos indivíduos com o meio ambiente, o que inclui a fauna, a flora e os demais recursos naturais. Um desses temas sobre revisão gira em torno do polêmico debate da existência ou não dos “direitos” dos animais.

Na filosofia libertária, um dos autores mais ilustres a trabalhar especificamente sobre essa questão foi Murray Rothbard, em seu livro A Ética da Liberdade, de 1982 (antes dele, Robert Nozick também abordou este tema na obra Anarquia, Estado e Utopia, de 1974). Em A Ética da Liberdade, o autor afirma que o homem é o único ser realmente dotado de direitos, isso porque “a capacidade individual do homem de escolha consciente, a necessidade que ele tem de usar sua mente e sua energia para adotar objetivos e valores, para decifrar o mundo, para buscar seus fins para sobreviver e prosperar, sua capacidade e necessidade de se comunicar e interagir com outros seres humanos e de participar da divisão do trabalho”¹ o tornam a única espécie merecedora de portá-los de fato. Dessa forma, conclui Rothbard, todas as demais espécies, justamente por não compartilharem dessas características básicas de racionalidade e sociabilidade, não possuem direitos, não passando de propriedades dos seres humanos ou de animais selvagens, sem dono.

Compreende também assim o ordenamento jurídico em vigor no Brasil, ao tratar juridicamente os animais de maneira em geral como bens, ou, em termos mais refinados, objetos de direito. Os seres humanos, por sua vez, são sujeitos de direito, pois são potencialmente capazes de exercerem direitos e deveres. Por isso mesmo, tanto um menor de idade como um indivíduo com alguma debilidade mental também são portadores de direitos, mesmo que necessitem de tutores para o seu exercício.  Posto isso, os animais, sendo objetos de direito, são merecedores de proteção da ação de terceiros tanto dos seus proprietários, quando estes forem particulares, como do Estado, quando estes forem públicos (habitem na natureza), já que a função de qualquer sistema de justiça é de preservar os bens jurídicos.

Contudo, os defensores dos direitos dos animais rebatem essa posição argumentando que animais, por serem seres vivos, não podem ser tratados como qualquer outra propriedade humana. Apontam que a condição de ser vivo lhes conferiria ao menos um tratamento diferenciado em relação ao trato dos indivíduos com as suas demais propriedades, não podendo assim ser tolerado que estes fossem maltratados sem motivo. Curiosamente, essa posição resvala na de John Locke, considerado por muitos como o “pai” do liberalismo político e que embasou seu trabalho na área da filosofia política precisamente nos direitos naturais, assim como o fez Rothbard. Afirma ele em sua obra Segundo Tratado sobre Governo Civil:

O homem desfruta de uma liberdade total de dispor de si mesmo ou de seus bens, mas não de destruir (…) qualquer criatura que se encontre sob sua posse, salvo se assim o exigisse um objetivo mais nobre que a sua própria conservação.²

De fato, ao contrário do que muitos imaginam, Locke acreditava que a disposição do homem sobre seus bens deveria possuir um limite, esse qual é o de evitar o desperdício ou a destruição imotivada ou irracional destes bens, posto que sendo estes escassos, melhor seria que fossem aproveitados pelos demais, os até então não-proprietários destes bens. Aliás, ainda de acordo com Locke, aquele proprietário que aja de forma tal que destrua ou desperdice determinado bem perde seu direito de propriedade sobre este, sendo legítimo que outros possam dele usufruir, conferindo-lhe assim a finalidade precípua de qualquer propriedade.

Essa concepção lockeana quanto aos limites do usufruto da propriedade em muito se assemelha ao instituto jurídico do abuso do direito, em sua concepção no direito romano, que é que quando um proprietário, utilizando-se regularmente do seu direito de propriedade, encontra-se violando os valores que justificam o reconhecimento desse mesmo direito. Ou seja, fazendo uma ligação com o tema aqui abordado, seria quando no exercício do seu direito o proprietário infringisse estragos tais aos seus bens (animais) que terminasse por lesar a própria noção e função da propriedade, que nada mais é do que a de satisfazer as necessidades fisiológicas e culturais do homem.³

A questão a ser resolvida agora é se o instituto jurídico do abuso do direito seria legítimo em uma sociedade livre e se este encontrasse em acordo com a filosofia libertária.

O princípio no qual se firma toda a filosofia libertária é o da não-agressão (PNA). Este princípio ético assevera que nenhuma iniciação de agressão contra a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos é aceitável. Uma sociedade fundamentada sobre o PNA é assim uma sociedade onde as pessoas são livres para buscarem seus próprios objetivos sem sofrerem com a interferência indevida de outros.

Entretanto, o PNA comporta uma ressalva: o uso da força por parte dos indivíduos é autorizado somente para deter ou fazer cessar uma agressão iminente ou em curso. A utilização da força nessa situação é denominada de legítima defesa. Dessa maneira, a vítima da agressão está legitimamente liberada para usar de meios necessários e com a força suficiente para impedir ou dar fim ao ato lesivo. Ressalta-se que a agressão pode ser dirigida contra qualquer bem jurídico.

É importante observar que há também previsão legal para outra modalidade de legítima defesa: aquela direcionada a terceiros. Nesse tipo, o indivíduo que busca impedir a agressão ou a iminência de agressão não é necessariamente a vítima dela, nem tão pouco está defendendo algum bem jurídico que seja do seu pertence. A permissão para essa modalidade de legítima defesa está calcada na idéia de solidariedade entre as pessoas, uma característica inerentemente humana. Frisa-se também que quando a intervenção for a favor de terceiro independerá de sua vontade ou de seu conhecimento.4

Apresentado esses pontos e retomando o argumento de Locke sobre a limitação moral no usufruto da propriedade, é lógico concluir, segundo essa linha de raciocínio e focando-se na questão em debate neste artigo, que o indivíduo que presenciasse agressões direcionadas a animais estaria legitimado moralmente para fazer cessá-las, dado que o proprietário do animal estaria com o seu ato danificando (lesões físicas) ou destruindo (matando) aquele bem jurídico, que melhor poderia ser utilizado por outrem; e justamente em face disso estaria o interventor do ato de agressão respaldado sobre a modalidade da legítima defesa de terceiros juntamente com a aplicação da norma moral lockeniana, posto que o animal, ao sofrer a agressão imotivada do seu dono, deixaria de manter neste instante sua condição de propriedade privada, convertendo-se com isso em um bem que pode ser disputado legitimamente por qualquer um, visto que naquele instante não pertence mais especificamente a alguém.

A posição aqui explicitada aparentemente consegue assim solucionar a problemática em torno dos maus tratos dos animais, sem atentar contra o princípio da não-agressão, nem tão pouco contra a filosofia libertária. Inclusive também resolve a discussão em torno da necessidade de ser conferir direitos a animais para resguardá-los de sofrimentos desnecessários, como evita a possibilidade de arbitrariedades sobre a definição de quais seres vivos seriam merecedores destes mesmos direitos. E, por fim, permite ainda que os indivíduos possam desfrutar de suas propriedades sem serem penalizados por isso, desde que objetivem buscar sua felicidade sem que esta entre em conflito com os direitos legítimos dos demais.

Notas

¹ ROTHBARD, Murray. A Ética da Liberdade. São Paulo: Instituto Mises Brasil, 2010.

² LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

³ Shvoong. Abuso de Direito. Disponível em: http://pt.shvoong.com/law-and-politics/law/1839792-abuso-direito/

4 Universo Jurídico. Legítima Defesa Própria e de Terceiros. Disponível em: http://uj.novaprolink.com.br/doutrina/1691/LEGITIMA_DEFESA_PROPRIA_E_DE_TERCEIROS


Sobre o autor

Adriel Santana

Formado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Articulista do Portal Libertarianismo.



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