Moeda moeda-real

Publicado em 23 de novembro de 2013 | por Thomás de Barros

Os austríacos e a demanda por moeda

Nota introdutória: o objetivo do texto que se segue não é dar respostas, mas apenas introduzir discussões. Em alguma medida, portanto, as linhas abaixo são portadoras de alto grau de heresia. Desde já, o autor pede perdão se não conseguir ser necessariamente claro em certas passagens da exposição.


A chamada Escola Austríaca proveu-nos, ao longo do último século, uma série de idéias que sem dúvida enriqueceram o debate econômico. Menger nos legou sua seminal teoria do valor subjetivo, apontando que algo só é um bem econômico quando colocado em nexo causal com a satisfação de nossas necessidades. Hayek, talvez o mais brilhante dos membros dessa corrente de pensamento, mostrou-nos como o processo de mercado pode ser entendido como um processo de aprendizagem, aproximando a teoria econômica do racionalismo crítico de Karl Raymund Popper. Por fim, sem dúvida os bons ventos de Viena proveram uma importante base àqueles que retiram alegria da crítica ao mecanicismo e ao walrasianismo.

Quando tratamos da dita Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos – uma das conclusões teóricas que mais empolga os partidários dessa escola – entretanto, vemos que alguns dos pilares da análise austríaca estão abertos a profundas críticas.

A crítica dos austríacos à agregação feita pelos seguidores do keynesianismo é, evidentemente, importante. Ao rechaçarem o uso de grandes e muitas vezes simplistas agregados macroeconômicos, esses economistas ultra-liberais sublinham a necessidade de se analisar a estrutura do capital e, assim, nos permitem fazer uma análise mais detalhada da esfera produtiva. No que tange à demanda por moeda e à concepção de taxa de juros, entretanto, os seguidores de John Maynard Keynes – em suas diversas versões – parecem ter posições bastante sólidas.

Concepções sobre a taxa de juros

Para os economistas anteriores da John Maynard Keynes – incluindo aí os austríacos – a taxa de juros em um mercado que não sofra com interferências governamentais tem a propriedade de representar a preferência intertemporal da sociedade. Trata-se de uma idéia é bastante simples: se os agentes econômicos decidem que valoram mais o consumo futuro do que o consumo presente, a taxa de poupança de uma sociedade aumenta e, por conseguinte, se amplia a quantidade de fundos disponíveis para empréstimo. Dessa forma, reduzem-se as taxa de juros.

A relação entre a preferência temporal da sociedade e o cotidiano econômico, contudo, não terminava por aí para os austríacos. Além de indicar como, ao longo do tempo, os indivíduos pretendem despender sua renda, o preço do aluguel do dinheiro – como podemos chamar a taxa de juros – teria o poder de indicar aos setores produtivos como organizar suas atividades.

Em linhas gerais, podemos dizer que os empresários, motivados por juros baixos, passariam a realizar investimentos mais longos, mais produtivos e intensivos em capital, abrindo mão de atender a demanda presente em prol de uma demanda futura. Através do sistema de preços haveria, pois, uma coordenação de planos espontânea que ajustaria a economia aos mandos do consumidor.

Dentro dessa abordagem, o ciclo econômico seria causado por uma interferência indevida da autoridade governamental que prejudicaria a emergência de uma ordem espontânea virtuosa. Ao ampliar a oferta monetária – por qualquer razão que fosse – o governo provocaria distorções no mercado de fundos emprestáveis. Com efeito, um aumento da quantidade de moeda em circulação geraria a falsa impressão de que houve um aumento na taxa de poupança, desencadeando o processo de novos investimentos. O sistema de preços, porém, não representaria a real preferência da sociedade, fazendo com que grande parte da nova estrutura produtiva gerada durante o período de bonança pouco servisse aos anseios dos consumidores. Dessa forma, assim que cessasse a emissão monetária, a verdade se imporia sobre os produtores, obrigando-os a realizar um doloroso processo de reajuste.

Ocorre que, se a abordagem austríaca acerta no projeto de introduzir a moeda na análise econômica, negando o programa de pesquisa do Equilíbrio Geral, não podemos negar que a mesma peca por considerá-la como um mero numerário, não como um bem que é demandado como reserva de valor em um ambiente de incerteza. Mesmo levando em conta o chamado Efeito Cantillon e mostrando que a moeda, enfim, não é neutra, a concepção austríaca parece entender que, na prática, o dinheiro só serve como meio de troca. Essa hipótese, por sinal, soa como necessária a qualquer conclusão que relacione inequivocamente taxa de juros e preferência intertemporal.

Em poucas linhas do décimo sexto capítulo de sua Teoria Geral, John Maynard Keynes mostrou a inconsistência da concepção clássica dos juros:

Um ato de poupança individual significa – por assim dizer – uma decisão de não jantar hoje, mas não implica, necessariamente, a decisão de jantar ou de comprar um par de sapatos daqui a uma semana ou um ano, ou de consumir uma coisa específica numa data especificada. Assim sendo, produz um efeito depressivo sobre as atividades econômicas aplicadas na preparação do jantar de hoje, sem estimular as que preparam algum ato futuro de consumo. [...]

A dificuldade surge de fato de que o ato de poupar supõe não uma substituição do consumo presente por algum consumo adicional específico, cuja preparação exija tanta atividade econômica quanto a que se necessitaria para o consumo equivalente à soma poupada, mas antes um desejo de “riqueza” como tal, isso é, a possibilidade de consumir um artigo indeterminado em uma data indeterminada.

A contribuição do economista de Cambridge, pois, é nos mostrar que os juros são determinados fundamentalmente pelo equilíbrio entre oferta e demanda por moeda, não por fundos emprestáveis. Em linhas gerais, portanto, os indivíduos demandariam moeda não só para realizar transações, mas também por sua liquidez. Dessa forma, abre-se a porta para que se desvincule crédito e poupança.

Conseqüências da crítica keynesiana à Teoria dos Ciclos

Em linhas gerais, podemos indicar que a crítica de Keynes, se considerada procedente, desmonta um pilar fundamental da intrincada e delicada Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos. Se os empresários não se guiam por um índice da preferência intertemporal da sociedade, as razões para o uso de métodos mais indiretos de produção precisam ganhar outra explicação.

Nesse cenário, a contribuição de John Hicks surge no horizonte como um interessante tema de pesquisa. Esse autor, influenciado pela Teoria Geral, buscou conciliar os insights de Keynes com a necessidade de se equilibrar o mercado de fundos emprestáveis Não é pretensão desse artigo, contudo, se debruçar sobre essas questões.

Outras críticas gerais

Quando tratamos da Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos, há pelos menos mais duas críticas que devem ser sublinhadas. A primeira e mais evidente diz respeito ao caráter parcialmente endógeno da oferta de moeda. Ao contrário do que as abordagens monetaristas nos sugerem, a autoridade monetária não detém o controle total sobre a oferta monetária. Os próprios agentes econômicos – mesmo que ignoremos o papel do sistema bancário – têm poder de criar moeda e o fazem diariamente quando controlam a velocidade de circulação ou dão liquidez a ativos antes não-líquidos.

Por fim, a última crítica que se deve fazer aqui às teses austríacas diz respeito à chamada “soberania do consumidor” tão ressaltada por autores como Ludwig Von Mises. Como Schumpeter já nos mostrou, a idéia de que os consumidores sejam capazes de apontar a direção da produção e das inovações é simplesmente insustentável – e, por sinal, incompatível com a concepção hayekiana de conhecimento descentralizado.

O sistema de preços pode, enquanto propriedade emergente das relações sociais, nos prover muitas informações. Ele, porém, não é exato nem todo-poderoso.


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