Contratos de escravidão são legítimos?
- Escrito por Adriel Santos Santana
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Por Adriel Santos Santana
Em um artigo anterior, afirmei que a concepção de direito inalienáveis não fazia sentido, posto que, se um direito não pode ser disposto por aquele que o tem, este não poderia ser considerado um direito, mas um dever, um encargo, uma obrigação. Essa afirmação incomodou alguns defensores dessa vertente filosófica dos direitos, os quais incluem até o filósofo libertário Roderick Long.
Long escreveu um artigo Slavery Contracts and Inalienable Rights - A Formulation onde defende uma norma ética que afirma que ninguém pode agredir o outro (princípio da não-agressão), da qual ele extrai a defesa da inalienabilidade de alguns direitos (vida, liberdade e propriedade), o que por sua vez tornaria algumas modalidades de contrato inválidas, como é o caso dos tais contratos de escravidão [Confira o artigo completo aqui].
No campo libertário, essa posição de Roderick Long entra em choque com a de outro famoso libertário, o economista Walter Block, que já escreveu vários artigos defendendo a validade de contratos de escravidão em uma sociedade livre, ou seja, sem o monopólio da justiça estatal. Para Block, o que torna um contrato legítimo ou não é a existência da vontade da partes; já o objeto desse contrato não é passível de questionamento, desde que este seja sobre algo em que as partes possam realmente dispor livremente. [Confira um deles aqui]
Antes de expor minha opinião sobre a validade ou não desse tipo de contrato e, consequentemente, sobre a existência ou não de direito inalienáveis, acredito ser importante analisar de maneira clara e simples os conceitos que desemborcam na resposta para esta questão. Dessa forma, faz-se preciso compreender o que de fato significa vários dos termos que servirão de base para uma melhor compreensão da posição sobre este tema que aqui será defendida.
Conceito de Direito
Um direito é uma prerrogativa moral oriunda da aplicação de uma filosofia moral à natureza do homem. Direitos, diferentemente de como são tratados atualmente, não são assim meras construções subjetivas, mas são princípios objetivos validados por uma filosofia moral/política.
Dessa forma, como afirma Ben O'Neill:
Um indivíduo possui o direito a algum bem específico — em oposição a um mero desejo por esse bem — apenas caso ele possua uma genuína prerrogativa moral que o permita ter tal bem. Tal atitude deve necessariamente ser acompanhada do fato de que outros indivíduos devem correspondentemente ser moralmente proibidos de impedir que o proprietário desse bem possua tal bem. Assim, dizer que uma pessoa tem direitos de propriedade (...) [é] uma afirmação de que é moralmente certo que um indivíduo controle sua própria propriedade, e moralmente errado que outros interfiram nesse controle.[1]
Portanto, um direito é o poder legítimo, segundo uma filosofia moral, de fazer ou deixar de fazer alguma coisa; de poder utilizar-se legitimamente da força para proteger determinados bens jurídicos (vida, liberdade e propriedade) contra a agressão de outros. Assim, como somente o proprietário tem a posse legítima e o poder de decisão sobre àquele bem, cabe exclusivamente a ele dispor da forma que melhor entender sobre aquele mesmo bem, desde que não agrida os bens e direitos de outros. Qualquer interferência nestes bens sem o seu consentimento é consequentemente uma violação de direitos.
Direitos Inalienáveis
Do latim inalienabĭlis, inalienável é aquilo que não se pode alienar (ou seja, cujo domínio não pode ser passado ou transmitido a alguém). Portanto, à luz da lei, o que é inalienável não pode ser vendido nem cedido.
O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usai seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.
Por liberdade entende-se, conforme a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme o que seu julgamento e razão lhe ditarem.
Segundo Thomas Hobbes:
Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder contribuir melhor para preservá-la.[2]
Os defensores dos direitos inalienáveis (jusnaturalistas) afirmam assim que existe um conjunto específico desses direitos aos quais os indivíduos não podem abrir mão, ou seja, transferir ou extingui-los livremente. Essa inalienabilidade se aplicaria a qualquer um, desde a própria pessoa, passando a outras e até mesmo aos governos.
Os direitos inalienáveis, argumentam eles, são inerentes ao indivíduo pelo simples fato da sua condição humana. Não existe ordem jurídica possível nem castigo que possa privar um ser humano deste tipo de direitos, tendo em conta que são independentes de qualquer tipo de fator particular.
Teoria dos Contratos
A origem etimológica do vocábulo contrato conduz ao vínculo jurídico das vontades com vistas a um objeto específico. O verbo contrahere conduz a contractus, que traz o sentido de ajuste, convenção ou pacto, sendo um acordo de vontades criador de direitos e obrigações[3]. Dessa forma, contrato pode ser definido como o acordo de vontade entre duas ou mais pessoas que tem a finalidade de adquirir, resguardar, modificar, transferir ou extinguir direitos[4].
Portanto, para a transferência de direito, não basta apenas a vontade do que cede, também é necessária a vontade do que recebe. Se uma delas faltar, o direito permanece, pois, se é meu desejo dar alguma coisa minha a alguém, e este se recusa a aceitar, nem assim eu teria renunciado simplesmente a meu direito, ou teria transferido-o a outro homem. Assim, a razão que me impelia a abandoná-lo à determinada pessoa estava somente nela, e não em qualquer outra.
Em todo contrato, ou ambas as partes cumprem aquilo que contrataram imediatamente, sem ter necessariamente, de modo algum, nenhuma confiança na outra; ou apenas uma cumpre, confiando na outra, ou ainda, não é cumprido por nenhuma. Quando as duas partes imediatamente cumprem seus compromissos, o contrato chega a seu fim tão logo se dê o cumprimento. Porém, quando é dado crédito a uma ou ambas as partes, aquele que recebeu então a confiança, promete posteriormente cumprir a sua parte; chama-se esse tipo de promessa de convenção.
A convenção estabelecida pela parte que recebeu crédito com aquela que cumpriu o prometido, mesmo que a promessa seja proferida em tempo futuro, transfere o direito futuro da mesma maneira como se o tivesse feito no presente. O cumprimento por uma destas partes é sinal bastante claro de sua compreensão para com a promessa da outra, em quem confiou, como significando que, certamente, cumpriria sua parte no tempo designado; e pelo mesmo sinal, aquela que recebeu o crédito, sabia que seria entendida da mesma maneira, demonstrando um evidente sinal de que tinha a vontade de cumprir com sua promessa ao não impedir tal entendimento.
As convenções podem se firmar somente sobre as coisas que estão sujeitas à nossa deliberação, pois não pode ser contratada se não pela vontade de quem contrata; ora, tal vontade é o ato último da deliberação; sendo assim, ela só pode se referir a coisas possíveis e futuras. Conseqüentemente, nenhum homem pode se obrigar, através de um pacto, a realizar alguma coisa impossível.[5]
Podemos nos livrar das obrigações contratadas através de duas maneiras: cumprindo-as ou por denúncia unilateral. Cumprindo, porque não nos obrigamos a mais do que isto. Por denúncia unilateral, porque, se aquele para com quem estamos obrigados nos livra do cumprimento desta obrigação, entende-se que está nos devolvendo o direito que lhe havíamos lhe transferido anteriormente. A denúncia unilateral ocorre nos contratos por tempo indeterminado, ou seja, aqueles contratos onde as partes não estipulam sua duração.
Entretanto, há aqueles casos em que uma das partes se recusa a cumprir com as obrigações estipuladas no contrato. Esse ato é denominado de inadimplemento. Quando ele sobrevier, o prejudicado pode pleitear a resolução do contrato em juízo. Nos contratos bilaterais está sempre implícita uma cláusula resolutiva em caso de inadimplemento. A parte lesada pelo inadimplemento pode requerer a rescisão do contrato com perdas e danos se não preferir exigir-lhe o cumprimento.
Contudo, para que um contrato seja considerado válido ou legítimo, ele precisa obedecer há determinados critérios, quais são: acordo de vontades, agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei.[6]
Assim sendo, um contrato é válido quando as partes concordam livremente sobre o seu conteúdo, sendo tais partes plenamente capazes de exercerem seus direitos e que o objeto deste contrato não seja vedado por lei ou este seja impossível de ser disposto entre elas.
Quando um contrato não obedece há um desses requisitos, diz-se que ele contém vícios; Estes vícios podem torná-lo nulo ou anulável. Nulo é o contrato que atenta contra norma legal ou que não tenha os pressupostos e requisitos de validade do negócio jurídico. Anulável é o contrato celebrado por pessoa relativamente incapaz, ou viciado por erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude.[7]
Erro é a falsa noção ou falsa idéia. Provém do não conhecimento da verdadeira natureza do objeto; a vontade se desvia ou não é real.
Dolo, dolus (latim) astúcia, engano, ardil, esperteza, manha. Assenta-se na má fé e na indução ao erro.
Coação, coactio, cogere (latim) constranger, forçar, impor, obrigar, violentar, restringir a liberdade do querer.
Estado de perigo é quando alguém, premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
Lesão ocorre quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.
Fraude, fraudare (latim), falsear ou ocultar a verdade com intenção de prejudicar ou enganar.
Escravidão e Servidão
Segundo o site Wikipédia, “a escravidão é a prática social em que um ser humano assume direitos de propriedade sobre outro designado por escravo, ao qual é imposta tal condição por meio da força”.[8]
Para o artigo 149 do Código Penal brasileiro, o crime de escravidão é definido como "reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto". Já a Organização Internacional do Trabalho (OIT), tipifica a prática como "todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de uma pena qualquer para o qual não se apresentou voluntariamente".
Por sua vez, a servidão consiste em uma situação onde indivíduos aplicam sua força de trabalho em benefício de outra em troca de proteção a vida e o direito de usufruir de um determinado lote de terra para a sua própria subsistência.[9]
Portanto, os elementos caracterizadores da escravidão são o uso ou ameaça de coerção, a disposição sobre o escravo como qualquer outra propriedade e a utilização da força de trabalho do escravo com os fins que forem do interesse do seu dono; enquanto que a servidão é um ato originado na voluntariedade das partes e na qual o servo não ganha o status de propriedade, como os dos escravos, não podendo assim ser vendidos ou transferidos, sendo possível a aquele romper o acordo de servidão há qualquer momento.
Em outras palavras, o que diferencia um do outro é a presença da submissão. Esta significa limitar-se voluntariamente ao outro sem contrariar a nossa consciência ou nos obrigar a fazer algo condenável ou à força. É assim a obediência voluntária de uma pessoa para com outra.
Uma Crítica
A defesa realizada por Roderick Long em seu artigo se baseia em uma conduta ética libertária por parte dos indivíduos, mas vai além desta: todo e qualquer ato que cause prejuízo ou dano a outro seria considerado ilegítimo. Essa ética não chega ser original, afinal é basicamente a mesma defendida por Jesus Cristo, segundo a máxima cristã do “não desejar ao próximo o que você não deseja para si mesmo”. Importante notar que essa é uma ética onde a conduta do indivíduo se sobrepõe a quem ela se direciona, seja o beneficiário desta ética “merecedor” ou não dela.
Não há dúvidas (acredito), que a ética cristã é de fato merecedora de todo o reconhecimento pela sua (super) humanidade. Aliás, ela constitui a base principiológica da maior parte do ordenamento jurídico ocidental. Contudo, há alguns problemas sérios na forma como Long constrói sua argumentação.
O primeiro problema reside no básico: o autor afirma que em uma sociedade livre contratos de escravidão não seriam legítimos porque ferem os direitos inalienáveis dos indivíduos, os quais estão por sua vez fundados numa moral cristã/libertária (ou “longeniana”, se assim preferir). Ora, como já foi mostrado anteriormente, os direitos se originam de uma filosofia moral. Como vivemos em uma sociedade cujo ordenamento jurídico é calcado sobre uma moralidade cristã, a posição defendida por Long só faz sentido enquanto outra filosofia moral não for usada como fundamento para outra ordem legal; e como a análise do autor é direcionada justamente para uma sociedade onde há a possibilidade de um sistema policêntrico de leis, é válido concluir que as mais variadas filosofias morais servirão de alicerce para esta gama de ordenamentos. Esta é uma conclusão lógica posto que diferentes pessoas possuem distintas formas de valoração moral e, consequentemente, defendem normas legais que melhor se adéqüem a sua própria ética. Assim, teoricamente, católicos escolherão uma ordem jurídica católica; mulçumanos optarão por um ordenamento legal mulçumano; budistas por uma ordem legal inspirada em sua filosofia etc.
O segundo problema está presente em um argumento peculiar usado por Long em seu artigo: o de que o direito libertário a não-agressão, da onde se extrai o respeito à vida, liberdade e propriedade, tornariam impossível que os indivíduos alienassem qualquer um destes a outros, pois estariam eles fora da sua esfera de decisão ou liberalidade. Assim, curiosamente, uma pessoa poderia legitimamente se matar, mas não poderia pedir ou contratar outra para matá-la. Notem que em ambos os caso o resultado é o mesmo: a morte do indivíduo. Entretanto, Long acredita ser um absurdo que outra pessoa, mesmo que sob a concordância da “vítima” da ação solicitada, possa agir de maneira tal que faça valer o desejo desta. Por isso, afirma ele que contratos que disponham sobre direitos inalienáveis são fraudulentos[10]. O problema aqui resvala no primeiro, o qual já argumentei no parágrafo anterior, mas também em um mais sério: Long acredita que sua ética é não apenas superior a todas as demais (o que é até “normal”), mas a deseja impor sobre todos os demais, incluindo aqueles que dela discordam. Em uma sociedade livre, esse é justamente o tipo de atitude que se busca impedir. O libertarianismo, como uma filosofia moral e política, busca sempre a defesa dos direitos básicos do homem, pois acredita que somente assim este poderá buscar realizar seus próprios objetivos. Não se julga quais objetivos são estes, nem tão poucos os meios pelos quais os indivíduos pretendem alcançá-los, desde que esses objetivos nem esses meios entrem em conflito com os direitos dos demais. Quem lê algo como isso defendido por Long pode até supor que, infelizmente, este não compreendeu o mais simples sobre a filosofia libertária.
O terceiro problema é mais conceitual: tanto Block quanto Long usam o termo escravidão como se este fosse equivalente a servidão. Esse erro pode ser constatado pelo fato óbvio que ambos utilizam a expressão “contrato de escravidão”, como se estes dois termos não fossem por si mesmos contraditórios. Também como já foi visto antes, um contrato é um acordo de vontades entre as partes, enquanto que a escravidão é um ato de agressão sobre um indivíduo com o objetivo de torná-lo propriedade do agressor. O primeiro se calca na liberdade dos indivíduos; o segundo é produto de uma violência. Portanto, não é possível haver “contratos de escravidão”. Contudo, há sim a possibilidade das partes firmarem contratos de servidão. Uma modalidade bem comum de contrato de servidão é a relação de emprego, onde uma parte se submete as ordens e comandos da primeira para a realização de determinados serviços em troca de um salário determinado. Neste tipo de contrato uma das partes aliena sua liberdade, se submetendo a vontade de outra, em prol de um benefício que está considera ser justa.
Conclui-se dessa maneira que contratos de escravidão não são possíveis, mas os de servidão sim, ao menos teoricamente em uma sociedade livre. Afinal, em uma sociedade onde as pessoas possam dispor sobre sua vida, liberdade e propriedade da forma que melhor entenderem, poderá esta abarcar as mais variadas filosofias morais e éticas possíveis, inclusive aquelas completamente contrárias aos princípios libertários.
Considerações Finais
Não alimento a ilusão que mesmo com todo o didatismo desse texto, algumas dúvidas e questões práticas surgirão por parte de algumas pessoas. Por isso mesmo, pretendo escrever mais três artigos nas próximas semanas explicando sobre cada um dos clássicos direitos inalienáveis (vida, liberdade e propriedade), apontando como estes podem ser alienados, vendidos ou transferidos e sobre quais condições estes contratos devem ser firmados para torná-los válidos.
Notas
[1] O'NEILL, Ben. A injustiça da justiça social. Instituto Mises Brasil. Disponível em: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=931
[2] HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
[3] LARROUSE. Grande Enciclopédia Larousse Cultura, Nova Cultural, vol. 7, 2004.
[4] GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
[5] HOBBES, Thomas. Do Cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2006.
[6] DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. vol. 3. São Paulo: Saraiva, 2008.
[7] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007.
[8] WIKIPÉDIA. Escravidão. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Escravid%C3%A3o
[9] WIKIPÉDIA. Servidão. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Servid%C3%A3o
[10] Aqui Long confundiu fraude, que é um elemento que torna um contrato anulável, com um objeto impossível, que é um elemento que torna um contrato nulo de pleno direito. Para uma maior compreensão rever o tópico “Teoria dos Contratos” neste texto.