Os ensinamentos libertários de South Park, parte I – o filme de 1999
- Escrito por Fernando Olszewski
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Sempre fui fã de South Park desde quando começou a passar no Brasil. Infelizmente perdi o filme no cinema na época, mas logo depois o assisti quando fiz intercâmbio nos Estados Unidos e morri de rir. Os episódios sempre queriam passar lições, e o próprio filme South Park:Bigger, Longer, and Uncut queria passar ensinamentos de vida e sociedade.
Uma característica que com o passar do tempo foi deixando South Park no topo da lista de meus programas favoritos – sejam animados ou com atores reais ele é número um na minha lista – é que este é um programa que ignora o politicamente correto. South Park não está ligando a mínima para o patrulhamento ideológico ou moral. Basicamente Trey Parker e Matt Stone, os criadores e dubladores da maioria dos personagens, dão o dedo do meio para qualquer crítico de qualquer tendência ideológica. Inclusive quando criaram – há muitos e muitos anos atrás – o termo “South Park Republicans”, eles disseram que isto era uma besteira – embora Matt Stone, pelo que parece, já ter sido filiado ao partido republicano.
Ao escrever estes textos falando sobre os ensinamentos libertários de South Park, irei utilizar episódios específicos e o filme, para mostrar como um simples desenho cheio de palavrões, cenas indecentes e brutalidades para efeito cômico consegue ensinar mais verdades do que muitos livros e professores jamais conseguiriam. Irei começar falando sobre o filme South Park: Bigger, Longer, and Uncut.
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South Park: Bigger, Longer, and Uncut foi o longa de 1999, e ele basicamente mostra a hipocrisia de uma sociedade que foi fundamentada sob o alicerce da livre expressão, mas que muitos de seus cidadãos no final do século XX se horrorizam a ponto de pedirem a censura por força do Estado de palavras consideradas de obscenas ou ofensivas. Uma das coisas que me deixou perplexo da primeira vez que morei nos Estados Unidos foi como muitos americanos adultos tinham sérios problemas contra o que chamam de profanity. Eu cresci vendo filmes e séries americanas, e me parecia que o uso de palavras como fuck, shit, goddamn it, entre outras, mesmo que não fosse constante, pelo menos não era incomum, nem causaria comoção tão grande. Demoraria alguns anos até eu ler e observar o suficiente que muitos indivíduos e grupos na América haviam se tornado demasiadamente preocupados em policiar palavras que consideravam ofensivas, seja por parte de pessoas que não gostam de palavrões por que talvez algum tipo de divindade sobrenatural não aprove, ou seja por que certas palavras sejam consideradas ofensivas a determinados grupos que são historicamente discriminados. Ou seja: direita ou esquerda, conservadores ou liberais (que aqui nos EUA é o nome adotado pelos esquerdistas e pró-welfare state), não interessa, criou-se um patrulhamento de palavras, como se fossem estas a causa de muitos dos problemas na sociedade americana e no mundo.
O filme South Park: Bigger, Longer, and Uncut mostra uma situação fictícia e, desculpem o acesso de fanatismo pelo desenho, incrivelmente hilariante na qual uma dupla de comediantes canadenses chamados Terrence & Phillip lançam um filme no qual praticamente todas as falas e músicas envolvem palavrões. Depois que os protagonistas de South Park (os garotos da terceira série: Stan, Kyle, Eric Cartman e Kenny) assistem ao filme de Terrence & Phillip no cinema, eles começam a usar palavrões o tempo todo e acabam sofrendo represálias da direção da escola, e eventualmente de seus pais também. Com o desenrolar da história, as mães da América, lideradas pela mãe de Kyle, começam uma cruzada contra o uso de palavrões e contra a indecência que acaba numa guerra contra o Canadá (país de origem de Terrence & Phillip). O filme possui muito mais tramas, mas o ponto que quero focar aqui é o ensinamento libertário que o filme passa – e passa com todas as intenções possíveis de passar: liberdade de expressão/discurso é um direito que não deveria ser regulado pelo Estado em nome de nada. Se você quer ter um ambiente de “segurança” quanto a discursos e quanto a maneira que as pessoas devem se expressar, você não terá liberdade de expressão.
Outro programa que gosto muito e cujo os criadores e apresentadores são amigos de Trey Parker e Matt Stone é Penn & Teller: Bullshit! E um dos episódios de temporadas passadas fala exatamente sobreprofanity. Basicamente é a mesma coisa: não existe free speech quando existe censura estatal ao uso de determinados tipos de palavras, ou quando existe censura estatal a determinado tipo de comportamento – contanto que este não agrida fisicamente a outros. Penn Jillette chega inclusive a dizer que um dos defensores da censura aos palavrões acredita que o que causa mal estar na sociedade sãopalavras desagradáveis e não comportamentos desagradáveis (algo absurdo). E isso me lembra de uma fala do filme de South Park na qual a mãe de Kyle, que é a líder da guerra americana contra os palavrões, resume toda a imbecilidade das pessoas que acreditam no patrulhamento das palavras: Horrific, deplorable violence is okay, as long as people don’t say any naughty words! (Violência horrível e deplorável é ok, desde que as pessoas não digam palavrões!)
Vale lembrar que apesar do filme focar especificamente na censura ao uso de palavrões, algo que é apoiado bastante por conservadores, principalmente conservadores religiosos, a idéia se aplica a todo tipo de patrulhamento que queira impedir as pessoas de utilizarem livremente as palavras, ou serem livres em seu discurso. Há alguns anos atrás, no Brasil, um político da “esquerda” chegou a propor o reconhecimento de uma lista de palavras consideradas politicamente incorretas. Isso seria simplesmente bater palmas para a censura, por mais que algumas das palavras desta lista possam ser usadas de forma pejorativa e discriminatória. A verdade é que não há meio termo: ou temos a liberdade de dizer tudo o que quisermos, ou aprovamos que o Estado faça engenharia social em nome de um suposto bem comum (“bem comum” decidido, é claro, por um grupo de iluminados de alguma ideologia coletivista ou alguma fé sobrenatural).
Enfim, o filme é um abre-alas para que South Park passasse todos os anos seguintes até a atual temporada tratando de temas que nem todo mundo gosta ou tem coragem de tratar, pelo menos não da maneira que eles tratam: defendendo o direito de fumantes contra a histeria anti-tabagista; mostrando como Walmart não é um bicho de sete cabeças que explora os pobres trabalhadores; que prostituição vai existir sempre, quer o governo queira ou não; que tolerância não é a mesma coisa que aceitação; e por aí vai.