O que Martin Luther King pode ensinar a Obama
A ironia foi notável. Na quarta-feira passada, estava o Presidente Barack Obama em frente ao Memorial de Lincoln para comemorar o 50º aniversário do notável discurso “I Have a Dream”. A ironia não consiste na banalidade de Obama discursar em frente ao Memorial, mas no fato de que enquanto ele falava, seu conselho de guerra estava planejando bombardear a Síria.
Enquanto o discurso de Martin Luther King, em 28 de agosto de 1963, dizia respeito à igualdade perante a lei e a situação dramática dos pobres, menos de 4 anos depois (e 1 ano antes de seu assassinato), em abril de 1967, ele voltou aos jornais ao denunciar a Guerra do Vietnã. Não é difícil imaginar como MLK veria a intenção de seu contemporâneo Barack Obama, também Prêmio Nobel da Paz, com respeito à Síria, sem mencionar o amplo militarismo de sua administração. Eu sei que tais análises simplesmente não são feitas – infelizmente – mas teria sido reconfortante se um membro da família King tivesse criticado o programa de guerras do Obama durante as homenagens a MLK naquele dia.
Em 4 de abril de 1967, King falou na Igreja Riverside, na cidade de Nova Iorque, durante um encontro organizado pela Clergy and Laymen Concerned about Vietnam (“Clérigos e Seculares Preocupados com o Vietnã” em tradução livre). Seu discurso foi intitulado “Beyond Vietnam – Time to Break the Silence”. (Além do Vietnã – É Hora de Quebrar o Silêncio em tradução livre). (Esse não foi o ponto inicial de sua divergência à guerra proposta do Lyndon Johnson. Tal fato ocorreu dois anos antes). O discurso de King foi uma crítica radical à interferência selvagem dos Estados Unidos na tentativa do Vietnã tornar-se independente e na intromissão de Johnson na subsequente guerra civil. Enquanto King referiu-se aos erros norte-americanos, ele também falou dos pecados e dos delitos cometidos.
Foi uma condenação profunda ao imperialismo e ao militarismo – e, por isso, totalmente relevante ao nosso tempo. Notar que “os homens não assumem facilmente a tarefa de se opor às políticas de seus governos, especialmente em tempos de guerra”, King disse “deveria ser completamente claro que ninguém que possui qualquer preocupação pela integridade e a vida dos Estados Unidos hoje pode ignorar a presente guerra. Se a alma norte-americana tornar-se completamente envenenada, parte da autopsia deveria informar: Vietnã”
Os Estados Unidos não era sua única preocupação, ele buscava ir além do nacionalismo:
Enquanto eu reflito sobre a loucura do Vietnã e procuro dentro de mim formas de compreender e responder de forma compassiva, meus pensamentos se dirigem constantemente às pessoas daquela península. Eu falo agora não dos soldados de cada lado, não das ideologias da Frente de Libertação, não da junta de Saigon, mas simplesmente das pessoas que vivem sob a maldição da guerra por praticamente três décadas ininterruptas. Eu penso neles, também, porque está claro para mim que não haverá solução significativa até que alguma tentativa seja feita de conhece-los e ouvir seus gritos de sofrimento.
Hoje nos dizem que os Estados Unidos buscam a liberdade para os habitantes da Síria (e Egito, Irã, etc.). Nos anos 1960, foi dito algo similar aos norte-americanos para justificar a guerra no Vietnã. King viu além das mentiras, notando que o governo dos Estados Unidos negou-se a reconhecer a independência declarada do Vietnã após a II Guerra Mundial, apoiando financeiramente o esforço francês para recolonizar a península.
O povo vietnamita “deve ver os norte-americanos como libertadores estranhos”, King disse.
Nosso governo sentiu, então, que o povo vietnamita não estava pronto para a independência, e nós novamente fomos vítimas da arrogância mortal ocidental que tem envenenado a atmosfera internacional há muito tempo. Com aquela trágica decisão nós rejeitamos um governo revolucionário que buscava a autodeterminação e um governo que não tinha sido estabelecido pela China – por quem os vietnamitas não têm muito amor – mas por forças claramente nativas que incluíam alguns comunistas. Para os camponeses, esse novo governo significava uma verdadeira reforma agrária, uma das necessidades mais importantes nas suas vidas.
Quando os franceses foram derrotados em 1954, o estado norte-americano perseverou, apoiando “um dos mais corruptos ditadores modernos, escolhido por nós, Premier Diem”
Os camponeses viram e se encolheram enquanto Diem brutalmente erradicava todo o tipo de oposição, apoiando os proprietários de terra que os extorquiam, e se recusando mesmo discutir a reunificação com o Norte. Os camponeses viram como tudo isso era presidido pela influência dos Estados Unidos e, então, por um crescente número de tropas norte-americanas que eram deslocadas para ajudar a sufocar a insurgência que os métodos de Diem haviam despertado. Quando Diem foi deposto, eles podiam ter sido felizes, mas a longa lista de ditadores militares pareciam não oferecer nenhuma mudança real, especialmente em termos de sua necessidade de terra e paz. A única mudança veio dos Estados Unidos, através do envio de mais tropas em favor de governos que eram particularmente corruptos, ineptos e sem apoio popular. Tudo isso enquanto as pessoas liam nossos folhetos e recebiam as promessas regulares de paz, democracia e reforma agrária. Agora eles definham por causa de nossas bombas e nos consideram, não seus companheiros vietnamitas, mas sim seu verdadeiro inimigo. Eles caminham triste e apaticamente enquanto que os transferimos da terra de seus pais até os campos de concentração onde necessidades sociais mínimas são raramente atendidas. Eles sabem que devem seguir em frente ou serão destruídos por nossas bombas.
As referências de King à Frente de Libertação Nacional e ao Vietnã do Norte mostram um esforço sério para entender o contexto histórico e contemporâneo do conflito. É sutil e justo, sem dúvidas ou racionalização.
Ele também expressou preocupação pelos soldados norte-americanos – muitos dos quais foram alistados, não esqueça – o que torna difícil acusar King de falhar em “apoiar as tropas”.
Eu estou igualmente muito preocupado com as tropas norte-americanas que lá estão. É notório que os estamos submetendo no Vietnã não somente ao processo brutal que ocorre sempre que dois exércitos se enfrentam com objetivo de destruição. Nós estamos adicionando cinismo ao processo da morte, pois eles devem saber depois de um curto período que NENHUMA DAS COISAS PELAS QUAIS AFIRMAMOS ESTAR LUTANDO ESTÃO VERDADEIRAMENTE ENVOLVIDAS. Em breve eles deverão saber que seu governo envia-os a uma guerra civil entre vietnamitas, e o mais inteligente certamente perceberá que nós estamos do lado dos ricos, e os protegidos, enquanto nós criamos um inferno para os pobres.
Esse tipo de análise radical era raro entre os oponentes à Guerra do Vietnã, os quais preferiram principalmente falar sobre erros estratégicos, em vez de oportunismo criminoso. Foi particularmente corajoso da parte de King, visto que ele estava trabalhando com Johnson e outras figuras-chave da política na agenda sobre os direitos civis. Não ouvimos falar muito sobre tais críticas atualmente.
King sugeriu cinco passos “concretos” de parte dos Estados Unidos: o fim dos bombardeamentos; um cessar-fogo unilateral; fim da atividade militar nos países vizinhos; aceitação da NLF (Frente de Libertação Nacional), a qual “tem um apoio substancial no Vietnã do Sul”, como um parceiro de negociação; e a estipulação de uma data para a retirada de todas as tropas estrangeiras.
Ele não era ingênuo, como pode ser visto por sua sugestão de que o governo dos Estados Unidos “deveria oferecer asilo a qualquer vietnamita que temesse por sua vida sob o novo regime, o qual incluía a Frente de Libertação”. (Ele também pediu reparações norte-americanas ao Vietnã “pelos danos que causamos”. Obviamente, tributar pessoas que não foram responsáveis pela guerra teria sido errado – King não era um libertário – mas deveria existir uma forma de forçar os legisladores a aprovar emendas pessoalmente na medida do possível).
King foi além do Vietnã e pediu um fim ao imperialismo corporativista patrocinado pelos Estados Unidos no terceiro mundo. Ele citou John F. Kennedy: “aqueles que tornam a revolução pacífica impossível, tornarão a revolução violenta inevitável”. Essa parte do discurso pode ser erroneamente compreendida como uma crítica aos mercados livres até que o indivíduo lembre que o governo norte-americano não estava promovendo os mercados livres de modo algum. Os Estados Unidos estavam promovendo, na ponta da baioneta, a plutocracia oriunda da manipulação dos mercados, amigável ao governo norte-americano e seus lacaios corporativistas.
Se King identificou esse sistema como “capitalismo” e então igualou-o ao “livre Mercado”, ele deveria ser perdoado. A culpa pertence aos defensores do livre mercado que permitem que essa confusão ocorra por não se oporem firmemente à política externa dos Estados Unidos por medo de soar “esquerdista”. King claramente viu que o espirito anti-revolucionário do Ocidente fez com o marxismo parecesse revolucionário. “Nossa única esperança hoje”, ele disse, “está em nossa habilidade de recapturar o espirito revolucionário, manifestando-se em um mundo às vezes hostil declarando hostilidade eterna à pobreza, racismo e militarismo”.
King foi pressionado a não falar sobre a a guerra, todavia, ignorou tal conselho. Como ele poderia pregar a não violência em casa, questionou, enquanto permanecendo em silêncio sobre “a maior fonte da violência do mundo atual – meu próprio governo”? Como, realmente?
// Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Russ Silva.